Uma viagem contra o embrutecimento do mundo. Papa Francisco no Chipre e na Grécia

O que há de ser o fio condutor das falas de Francisco durante sua 35ª viagem internacional? Talvez, uma resposta possível esteja no exemplo que cita de Barnabé, aquele que se fez amigo e chamou a caminhar consigo

Papa Francisco abraça imigrante em Lesbos | Foto: Vatican Media

Por: João Vitor Santos | 09 Dezembro 2021

 

Logo no início do Advento, o Papa Francisco se pôs em viagem. Talvez, ele estivesse aproveitando esse tempo de espera e, também, de esperança para, mais uma vez, sensibilizar o mundo para a emergência de mudarmos para não submergirmos num tempo de desesperança e de um egoísmo que parece alimentar um infindável estado de crises. Em sua 35ª viagem internacional, passou pelo Chipre entre os dias 02 e 04 de dezembro e de lá foi direta para a Grécia, onde permaneceu até o dia 06 de dezembro. Se é fato que essas terras banhadas pelo Mediterrâneo geraram uma população cujos modos de vida têm grande influência sobre as lógicas do Ocidente, Francisco foi ao centro desse pensamento para mostrar que algo não anda bem e que parecemos ter esquecido a essência que partiu desse lado do mundo.

 

 Não à toa que sua fala foi recheada de referência à Filosofia grega. Mas, enquanto seu discurso sofisticadíssimo bebia em Platão, o pontífice também se mostrava muito duro nas críticas a uma Europa que parece ter esquecido essa gênese. “A Europa gagueja, sim. Lembro a todos que 'os bárbaros' foram chamados assim no final do mundo antigo justamente porque 'gaguejavam', não sabiam se expressar, eram julgados pertencentes a uma civilização primitiva, tosca, feroz e cruel. Conceito muito diferente daquele de estrangeiro, o estrangeiro sempre era acolhido por ser enviado pela divindade, e por isso era sagrado”, avalia Maria Antonietta Calabrò, vaticanista do Huffington Post, em sua análise dessa viagem. Para ela, “Francisco (o que não é fácil para um argentino, que veio quase do fim do mundo) está enfatizando cada vez mais a importância da Europa, da civilização europeia e de suas raízes”.

 

Papa Francisco entre imigrantes na ilha de Lesbos (Foto: Vatican Media)

 

No entanto, esse exercício do pontífice não se trata de conversão eurocêntrica. Isso porque Francisco se volta para a Europa para chamar a atenção de como também é de lá que irradia uma intransigência global, de humanos que se fecham em si e ignoram aqueles que sofrem. É claro que a questão em pauta é a crise migratória, recrudescida ainda mais – com o perdão da redundância, se é que é possível – pela pandemia, mas Francisco faz passar por ela outras crises, como a política e a ambiental. Por isso, Calabrò é cirúrgica ao afirmar que é preciso traçar uma linha entre o discurso do Papa no Chipre, e aquele tão sofisticado proferido em Atenas, e sua fala no regresso a Lesbos (pois essa foi, para Lesbos, a primeira viagem de Bergoglio como Papa, já chamando a atenção para o drama migratório que se via no Mediterrâneo). Para ela, os discursos são “absolutamente complementares, mas o de Lesbos só pode ser totalmente compreendido lendo-o através daquele de Atenas. O discurso em que o Papa frisou que ele foi como 'peregrino' e que cultura e civilização transbordam de espiritualidade para haurir da mesma felicidade que entusiasmou 'o grande padre da Igreja São Gregório de Nazianzo': 'Era a alegria de cultivar a sabedoria e de compartilhar sua beleza, uma felicidade que não individual e isolada, mas que nasce do assombro, tende ao infinito e se abre à comunidade'”.

 


Mapa com as próximas viagens do Papa Francisco em 2021 e 2022. Em verde, as viagens a Grécia e Chipre. Em amarelo, as viagens que estão sendo planejadas. E em roxo, as viagens que o Papa disse pretender fazer em breve. Clicando nos traçados, você pode conferir a distância aproximada de Roma a cada localidade.

 

No Chipre, um modelo de fraternidade

 

E o que há nestes discursos? Comecemos com o  discurso feito no Chipre, no início da jornada, pois parece ter ali uma pista. Francisco cita Barnabé, o apóstolo filho daquela terra. Para ele, a história desse apóstolo deve ser lembrada pela idoneidade desse sujeito que, “escolhido pela Igreja de Jerusalém”, foi enviado como um explorador que vai encontrar pessoas de várias origens. “Precisamos duma Igreja paciente: uma Igreja que não se deixa abalar e perturbar pelas mudanças, mas serenamente acolhe a novidade e discerne as situações à luz do Evangelho”, diz, ao relacionar com Barnabé. “A Igreja em Chipre vive de braços abertos: acolhe, integra, acompanha. É uma mensagem importante também para a Igreja em toda a Europa, marcada pela crise da fé”, acrescenta.

 

 

 

Logo, Francisco toma Barnabé como aquele que sai do Chipre e que sempre acolhe, se coloca fraternalmente diante de outros e outras que encontra. E, quem sabe, o exemplo mais forte dessa fraternidade é a acolhida e amizade com Paulo de Tarso. Ambos viajam para espalhar o Evangelho apesar de toda a perseguição e, mesmo com discordâncias entre eles, a fraternidade não foi posta à margem. “Isto é a fraternidade na Igreja”, aponta Francisco. “Temos necessidade de nos acolhermos e integrarmos, de caminharmos juntos, de sermos todos irmãs e irmãos!”, conclui. Mas esse seria só um preâmbulo de uma fala que ainda seria adensada nessa viagem.

 

 

 

Acolher e saber olhar com cuidado as diferenças. Essa foi a forma que Francisco encerrou sua passagem pelo Chipre, ao falar da necessidade de uma Igreja mãe, aquela progenitora que estimula esses sentimentos e que anima a construção de pontes e jamais se alegra com muros erguidos. “Que a fraternidade vivida em Chipre possa recordar a todos, à Europa inteira que, para construir um futuro digno da humanidade, é preciso trabalhar juntos, superar as divisões, derrubar os muros e cultivar o sonho da unidade”, provoca Francisco.

 

Acesse a íntegra do discurso em texto

 

E sem fraternidade, o fracasso da democracia

 

Em terras gregas, mais especificamente em Atenas, o grande destaque do discurso oficial do Papa Francisco foi “o retrocesso da democracia”. Se seguirmos com essa hipótese de que a linha que une as falas do pontífice nessa viagem é a fraternidade, podemos concluir que, sem um ambiente fraterno, o interesse individual se sobressai e abre espaço para posições totalitárias, pondo em risco a democracia. E não apenas democracia como regime político, mas como uma expressão de construção coletiva do bem comum. “Sem Atenas e sem a Grécia, a Europa e o mundo não seriam o que são; seriam menos sapientes e menos felizes”, disse Francisco. Ou seja, nossa evolução para uma sociedade mais complexa passa pela experiência ateniense de polis e democracia.

 

 

 

É dessa experiência da organização de humanas em sociedade mais complexas que Francisco observa que “a Grécia convida o ser humano de cada tempo a orientar a viagem da vida para o Alto, para Deus, porque temos necessidade da transcendência para ser verdadeiramente humanos”. Entretanto, reconhece que hoje essa experiência parece esquecida, pois “no Ocidente, que daqui surgiu, se tende a ofuscar a necessidade do Céu, enredados pelo frenesi de mil correrias terrenas e pela ganância insaciável dum consumismo despersonalizante, estes lugares convidam a deixarmo-nos maravilhar pelo infinito, a beleza do ser, a alegria da fé”. Logo, nos fechamos em nós mesmo e esquecemos da polis e de toda experiência de organização social.

 

Acesse a íntegra do discurso do Papa em texto

 

Esse “frenesi de mil correrias terrenas e pela ganância insaciável dum consumismo despersonalizante” apontado por Francisco traz em si a gênese que arruína a fraternidade. “Não se pode deixar de constatar, com preocupação, que hoje – e não só no continente europeu – se verifica um retrocesso da democracia. Esta exige a participação e o envolvimento de todos e, consequentemente, requer fadiga e paciência. É complexa, ao passo que o autoritarismo é despachado, e as garantias fáceis propostas pelos populismos aparecem tentadoras”, aponta. E segue: “em várias sociedades, preocupadas com a segurança e anestesiadas pelo consumismo, o cansaço e o descontentamento levam a uma espécie de «ceticismo democrático». Mas a participação de todos é uma exigência fundamental; e não só para alcançar objetivos comuns, mas porque responde àquilo que somos: seres sociais, irrepetíveis e ao mesmo tempo interdependentes”.

 

 

Assim, mais uma vez toca nos desdobramentos dessa crise da democracia, que se complexifica numa crise da humanidade ao abarcar ainda mais questões sociais, econômicas e climáticas. Por isso, é direto ao defender que, até como forma de animar essa fraternidade comum, precisamos ir “do tomar partido a participar”. “Tal é a motivação que nos deve mover em várias frentes. Penso no clima, na pandemia, no mercado comum e, sobretudo, nas pobrezas generalizadas. São desafios que exigem uma colaboração concreta e ativa. Precisa dela a comunidade internacional, para abrir sendas de paz através dum multilateralismo que não seja sufocado por excessivas reivindicações nacionalistas. Precisa dela a política, para antepor as exigências comuns aos interesses privados”, completa.

  

 

Como bem coloca a vaticanista Maria Antonietta Calabrò, “o impressionante é que Francisco aponta para a Europa um caminho, não conceitos”. Isso fica claríssimo quando o pontífice pontua em seu discurso em Atenas que “pode parecer uma utopia, uma viagem sem esperança num mar turbulento, uma odisseia longa e irrealizável. E, contudo, a viagem num mar agitado – como ensina o grande conto homérico – muitas vezes é a única via. E alcança a meta se estiver animada pelo desejo de casa, pela diligência de avançar juntos, pelo nóstos álgos, pela nostalgia”.

 

Em Lesbos, a materialidade da fala em Atenas

 

A jornada de Francisco pelas terras mediterrâneas não podia cessar sem uma passagem por Lesbos, aquela mesma ilha grega em que Bergoglio ergueu uma das primeiras bandeiras de seu pontificado: o drama da crise migratória e dos refugiados. Mais uma vez, a indicação da vaticanista Maria Antonietta Calabrò é importante para compreender as falas e os atos do pontífice. Ela explica que “trata-se de dois discursos absolutamente complementares, mas o de Lesbos só pode ser totalmente compreendido lendo-o através daquele de Atenas. O discurso em que o Papa frisou que ele foi como "peregrino" e que cultura e civilização transbordam de espiritualidade para haurir da mesma felicidade que entusiasmou "o grande padre da Igreja São Gregório de Nazianzo: ‘Era a alegria de cultivar a sabedoria e de compartilhar sua beleza, uma felicidade que não individual e isolada, mas que nasce do assombro, tende ao infinito e se abre à comunidade’”.

 

 

Pois é na ilha que o Papa corporifica um dos flagelos que o fim da fraternidade pode levar e por isso insiste, como o grito de um homem no meio do mar que se agarra a uma única boia: “Paremos este naufrágio de civilização!”. Nada mais icônico e simbólico do que ir a terras tidas como berço da civilização para chamar atenção que é de lá que vem uma das causas que tem levado à derrocada essa própria civilização. E por isso insiste: “sim, é um problema mundial, uma crise humanitária que diz respeito a todos. A pandemia atingiu-nos globalmente, fez com que todos nos sentíssemos no mesmo barco, fez-nos experimentar o que significa ter os mesmos temores”.

 

 

Para ele, é fundamental que “compreendemos que as grandes questões devem ser enfrentadas em conjunto, porque, no mundo atual, são inadequadas as soluções fragmentadas”. E, do meio desse epicentro da crise migratória, dispara: “enquanto as vacinações se estão a efetuar fadigosamente a nível planetário e algo parece mover-se, embora por entre inúmeros atrasos e incertezas, na luta contra as mudanças climáticas, tudo parece baldar-se terrivelmente no que diz respeito às migrações. E, no entanto, há pessoas, vidas humanas em jogo. Está em jogo o futuro de todos, que, só poderá ser sereno, se for integrador. Só se aparecer reconciliado com os mais frágeis é que o futuro será próspero”.

 

 

Mais uma vez, temos nossa hipótese do fio condutor da fraternidade aparecendo. Nas falas do pontífice, fica evidente que não há um em sofrimento que não impacte o outro. É essa perspectiva que parece ter pedido que ele chame atenção. “Quando são repelidos os pobres, repele-se a paz”, pontua. “É triste ouvir propor, como solução, o uso de fundos comuns para construir muros, para levantar barreiras de arame farpado. Estamos na época dos muros e do arame farpado. Claro, compreendem-se os medos e inseguranças, as dificuldades e perigos. Fazem-se sentir o cansaço e a frustração, agravados pelas crises econômica e pandêmica, mas não é erguendo barreiras que se resolvem os problemas e melhora a convivência”, completa.

 

 

Ao fim, Francisco propõe que tenhamos um olhar de esperança, que, segundo ele, pode ser animado com o olhar atento ao rosto das crianças. São os pequeninos, as futuras gerações a quem o Papa chama tanto a atenção por serem as principais vítimas das ruínas de um mundo menos fraterno, especialmente entre humanos, mas também com o planeta. “Tenhamos a coragem de nos envergonhar à vista delas, que são inocentes e constituem o futuro. Interpelam as nossas consciências, perguntando-nos: 'Que mundo nos quereis dar?' Não fujamos apressadamente das cruas imagens dos seus corpinhos estendidos, inertes, nas praias. O Mediterrâneo, que uniu durante milênios povos diferentes e terras distantes, está a tornar-se um cemitério frio sem lápides. Esta grande bacia hidrográfica, berço de tantas civilizações, agora parece um espelho de morte. Não deixemos que o mare nostrum se transforme num desolador mare mortuum”.

 

 

 

“Sonhem grande! E sonhem juntos!”

 

No fechar das cortinas de sua passagem pela Grécia, o Papa Francisco olha aos jovens e provoca a mais um ato concreto de fraternidade. Mais do que animar os jovens para que não percam as esperanças e sigam sonhando, ele pede sonhem juntos. “Você não deve se deixar paralisar pelo medo, sonhe grande! E sonhe juntos! Como aconteceu com Telêmaco, haverá alguém que tentará te impedir. Sempre haverá alguém que lhe dirá: "Deixe isso, não se arrisque, é inútil. Os anuladores dos sonhos, os assassinos da esperança, os nostálgicos incuráveis do passado"”, disse ao recordar Aboud, o jovem sírio que fugiu com sua família da Síria, “depois de várias vezes ter estado a ponto de ser morto na guerra". “E depois de tantos 'nãos' e milhares de dificuldades, chegaram a este país da única forma possível, de barco, ficando 'numa rocha sem água e sem comida, esperando o amanhecer e um navio da guarda costeira': uma verdadeira odisseia dos nossos dias, como Telêmaco na Odisseia de Homero”, completou o papa.

 

 

 A fala de Francisco foi a jovens gregos a quem também, como uma velho pai, o pontífice deu dicas preciosas para que não se contaminem com o rancor e a prostração de nossos tempo. São elas:

 

 

 

 

 Síntese da viagem

 

Como sempre, a viagem oficial do Papa Francisco de fato foi encerrada com um encontro com os jornalistas de voo de volta para Roma. Diante de uma Igreja combalida, que parece se mover ainda lentamente diante das acelerações de nossos tempos, o assunto dos abusos sexuais praticados por clérigos, outra chaga da Igreja, veio à pauta. Evidente que isso ganhou destaque em toda imprensa internacional, pois ao falar dos abusos, em especial do caso Aupetit, Francisco disse: “os pecados da carne não são os mais graves. Os mais graves são aqueles que têm mais 'angelicalidade': a soberba, o ódio”.

 

 

Francisco, entre os jornalistas, no voo de volta para Roma (Foto: Vatican Media)

 

É compreensível que uma frase dita assim, ainda mais sobre casos tão rumorosos, gere manchetes. Mas, sem forçar uma defesa do pontífice, o que também obviamente não nos cabe, olhemos com mais vagar e retomemos aquela hipótese inicial, de que a fraternidade é o fio condutor de todas as falas da viagem pelo Chipre e Grécia. Nesse voo de volta para casa, Francisco insistiu: “eu hoje talvez veja dois perigos contra a democracia: um é o dos populismos, que estão um pouco aqui, um pouco ali, e começam a mostrar as garras. (...) De outro lado, se enfraquece a democracia, [esta] entra num caminho em que lentamente [se enfraquece] quando se sacrificam os valores nacionais, caem, digamos uma palavra feia, mas não encontro outra, num “império”, numa espécie de governo supranacional e isto é algo que deve nos fazer refletir”.

E, ainda: “sobre as pessoas que impedem a migração ou fecham as fronteiras, direi o seguinte. Atualmente está na moda levantar muros ou arame farpado ou até mesmo o arame com concertinas (os espanhóis sabem o que isso significa). Costuma-se fazer estas coisas para impedir o acesso. A primeira coisa que direi é: pense no tempo em que você era um migrante e não o deixavam entrar. Era você quem queria fugir de sua terra e agora é você quem quer construir muros. Faz bem (pensar nisso). Porque aqueles que constroem muros perdem o sentido da história, de sua própria história”.

 

 

 

Por isso, podemos tomar essa conversa com os jornalistas como uma síntese de toda a viagem, pois o Papa ainda relaciona essas a outras crises. E, por fim, lembra o encontro com os patriarcas e, mais uma vez, da emergência de se construir a fraternidade como uma saída para um mundo em crises. “Agradeço a Ieronymos, a Chrysostomos e a todos os patriarcas que têm este desejo de caminhar juntos”, diz. Isso porque, para ele, mais do que sentar e esperar acordo teológicos, é preciso “seguirmos em frente juntos, rezando juntos, fazendo caridade juntos”. “Eu conheço, por exemplo, a Suécia, que acho que a Caritas luterana e católica trabalham juntas. Trabalhar juntos e rezar juntos, isso nós podemos fazer, o resto que o façam os teólogos, que não entendemos como se faz”, conclui.

 

Confira a conferência do IHU dessa semana que tratou do tema da crise migratória

 

 

 

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